“Quando tiverdes elevado o Filho do Homem, então sabereis quem eu sou”
(Jo 8,27)
Introdução
Com Maria, a Mãe de Jesus, subimos a colina
do Calvário.
Guiados por ela viemos até ao Gólgota, grande
cúspide da História, lugar sagrado e culminante no qual se encontram todas as
gerações de todos os tempos. Aqui a História da Salvação tem o seu capítulo
mais importante, registrando a dramaticidade de um sacrifício, doloroso,
pungente que resgata a humanidade. Morre um Deus pelas suas criaturas por entre
ignomínia inenarrável, num gesto grandioso de dileção. Trata-se não unicamente
de um ato heróico de um homem que se submeteu ao Pai até o fim: a morte numa cruz,
mas sacrifício de um homem que era Deus. Acontecimento único que ultrapassa
todas as razões da razão, pois é a prova máxima da afeição divina pelos homens
fato inaudito, desconcertante diante do qual se comove o universo, a terra
treme e se rasga o véu do templo.
O Redentor
Jesus havia proclamado
que o Filho do Homem viera para servir e dar a sua vida em resgate por muitos
(Mt 20,28).
No alto do madeiro
entre o céu e a terra ele resgatou a todos, pois, como ensina o Apóstolo Paulo:
“Cristo nos remiu da maldição da Lei tornando-se maldição por nós, porque está
escrito: Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro” ( Gl 3,13).
O abandono do Pai
(Mc15,35) é o ponto culminante desta situação execranda, que marca
profundamente sua agonia pregado numa cruz.
A suprema hora da
morte reserva para todos sofrimentos físicos e morais. Entretanto, só para o
Salvador tais padecimentos chegariam ao máximo, pois Ele experimentou, enquanto
homem, a rejeição do próprio Deus.
Vai morrer no mais
total abandono o Filho bem-amado do Pai, desprezado pelos homens, envolto em
trevas profundas.
Tudo para que o mundo
soubesse a intensidade do seu amor que foi assim às raias do maior sofrer que
se registra na História.
Para alcançar o grande
perdão, pois o pecado é a ofensa a um Ser infinito, ele beberá até à última
gota o cálice de um sofrer sem precedentes.
O homem se desviara de
seu Criador, era mister colocá-lo novamente na rota divina.
Todo o mistério do
sofrimento de Jesus se resume no fato de se ter Ele feito homem para resgatar
uma multidão de irmãos, dando à justiça do Pai a satisfação total.
O drama do Calvário
não é um mero acidente histórico, um fato dentre milhares de outros, pois tem
sua origem num gesto de amor de Deus: “O Verbo se fez carne e habitou entre
nós” (Jo 1,l4). João Evangelista admirado, pasmo, perplexo ante tal gentileza
do Criador, declarou num momento de pulcra inspiração: “Nisto se manifestou o
amor de Deus entre nós: Deus enviou o seu Filho unigênito ao mundo para que
vivamos por ele. Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas
foi ele quem nos amou e enviou-nos o seu Filho como vítima de expiação pelos
nosso pecados”( l Jo 4,9-10).
O sacrifício
voluntário de Cristo no Calvário foi a execução no tempo do decreto eterno de
redenção pronunciado no céu e brotado dos infinitos abismos do amor do
Todo-poderoso. Foi por isto que Ele, enquanto homem, “se fez obediente ao Pai
até à morte e morte de cruz” (Fl 2,8)
Quando a palavra
criadora de Deus chamou do nada tudo que existe, quando Ele revestiu a terra de
beleza e tirou de seu seio as mil formas de vida, mostrou-se como Deus
Onipotente, cheio de poder, glória e sabedoria. Quando criou o homem à sua
imagem e semelhança se manifestou como Pai repleto de magnanimidade e o fez
participante de sua vida divina, elevando-o à ordem sobrenatural.
Na cruz, porém,
resplandece novo poder, nova glória, nova sabedoria, novo amor, nova
paternidade. Poder que se despoja para engrandecer a criatura ingrata, glória
que se apaga para repleta de honra quem do paraíso fora expulso, amor que se
sacrifica para redimir uma raça prevaricadora, paternidade que leva à imolação
o Filho dileto para regeneração de filhos infiéis.
Algo, realmente,
inconcebível.
A revelação de um grande amor
A
escola comparatista não logrou jamais descobrir em qualquer religião não-cristã
uma realidade paralela a este mistério redentor de Jesus Cristo.
Os falsos deuses da antigüidade, como os do
Egito, da Mesopotâmia, da Pérsia, da Índia, da Grécia, de Roma estavam todos
eles submetidos às leis cegas da Natureza. As divindades redentoras do
helenismo não eram senão partes do complexo natural dos seres. Sofrimento,
morte, ressurreição, elas experimentavam justamente segundo seu destino. Era
algo involuntário, necessidade trágica da qual não sabiam escapar.
A teologia grega que
se elevou ao mais alto nível outra coisa não era, além disto, do que um
movimento de anábasis, ou seja, de ascensão da sensível ao inteligível e,
finalmente, ao Primeiro Princípio. O movimento de katábasis, da descida do
Absoluto à contingência do mundo e do ser racional é próprio da teologia
cristã, é a grande novidade que se manifesta na História e que tem o ápice de
sua manifestação num Deus que agoniza e morre numa Cruz de braços abertos para
todos.
Adite-se que nas
religiões primitivas a libertação do iniciado nos mistérios não é operada pelas
divindades. Antes, se trata de uma atividade do crente que, por uma espécie de
sortilégio se põe ele mesmo a reproduzir, de maneira puramente exterior e graças
a ritos e cerimônias, posturas que julga ser do agrado do deus que adora. Tudo
se passa na esfera cultual e até estética. É uma operação mágica. Busca-se a
clemência e a identificação com a divindade da qual se espera um influxo
especial, sobretudo a purificação interior e o afastamento de forças maléficas.
Por entre as
concepções panteístas e manifestações religiosas teatrais o mistério sublime de
um Deus que se imola por amor no alto de uma cruz transcende tudo que até então
o homem havia imaginado e esperado.
É este, não há dúvida,
o ato mais solene da História.
Todas as outras
tentativas de aproximação da divindade por mais notáveis que tivessem sido,
enquanto manifestação do senso religioso do homem, são insignificantes ante o
que se deu no Calvário.
Os sacrifícios da
Antiga Aliança apenas prefiguravam a verdadeira imolação que repararia
totalmente a desobediência de nossos primeiros pais e todos os outros pecados
através dos tempos. O cordeiro imolado segundo a instituição mosaica afastava o
devastador, mas o verdadeiro Cordeiro de Deus é este sacrificado no Calvário,
trazendo a verdadeira redenção. É o que está escrito na carta aos Hebreus: “De
fato, se o sangue de bodes e de novilhos, e se a cinza da novilha, espalhada
sobre os seres ritualmente impuros, os santifica purificando os seus corpos,
quanto mais o sangue de Cristo que por um espírito eterno, se ofereceu a si
mesmo a Deus como vítima sem mancha, há de purificar a nossa consciência das
obras mortas para que prestemos um culto ao Deus vivo” ( Hb 9,13-14).
Apenas à luz de uma fé
profunda pode esta realidade ele ser penetrada. Tanto isto é verdade que São
Paulo claramente afirmou: “Nós
anunciamos Cristo crucificado que, para os judeus é escândalo, para os gentios
é loucura” (1 Cor 1,23).
Doravante é esta cruz
que apontará a cada um a rota da salvação. Ela se fez a bandeira de grandes
vitórias, guia de todos os santos, sinal de amparo em todos os momentos da
vida. Ela transmite a fortaleza interior, dá alegria na tribulação, conduz à
santidade, ilumina nas trevas do pecado, arranca de profundezas abissais.
Por ela Cristo se
tornou o autor de nossa salvação e venceu com sua morte a morte de todos os
mortais!
A cruz na vida do cristão
A cruz na qual morreu
Jesus é, assim, o símbolo máximo de seu amor para com os homens (Jo 15,13) e,
projetada na existência do cristão, é a resposta suprema de dileção deste para
com o seu Redentor. O sofrimento é inevitável na existência humana. Dores
físicas e morais, além da fadiga que é inerente ao trabalho cotidiano, quando
unidas à obra redentora de Jesus ganham uma dimensão transcendental, conferindo
à crente fortaleza interior.
É impossível chegar à glória da ressurreição
sem passar pelo Calvário(Lc 14,26). Eis por que São Paulo, o teólogo da
presença da cruz de Cristo na vida cristã, dizia: “nós, porém, pregamos Cristo
crucificado” (1 Cor 1,23). É que a cruz libertou o homem do pecado e da morte,
estabelecendo definitivamente a Nova Aliança de Deus com a humanidade.
O cristão é então aquele que vive como quem,
no batismo, foi “crucificado com Cristo” (Gl 2,19 e ss;5,24;Rm 6,1-11;Col 2,11
ss). Isto significa que o discípulo do Salvador está morto para o pecado que
impede amar a Deus e aos irmãos, aceitando com paciência as tribulações da
trajetória neste mundo.
A paz, a beatitude interior que fluem do
Senhor ressuscitado só são possíveis para quem abraça amorosamente a cruz
redentora. Os grandes santos atingiram a culminância de uma existência
autenticamente evangélica por terem penetrado a espiritualidade da cruz. Atingiram
deste modo a maturidade cristã, aquela perfeição proposta por Jesus: “ Sede
perfeitos como o Pai Celeste é perfeito” (Mt 5,48), ou seja, num esforço
penoso, contínuo, buscaram se assemelhar ao Deus três vezes santo.
Os teólogos e a cruz
Nos primeiros séculos do cristianismo os
escritos dos teólogos revelam como a cruz é um instrumento da obra salvífica e
a comparam com a árvore da vida do paraíso terrestre, com a arca de Noé, com a
lenha do sacrifício que Isaac levou ao monte Moriá, com a escada de Jacó, com a
vara de Moisés, com a serpente de bronze, a vara de Aarão reverdecendo no mesmo
dia e revelando o sacerdote legítimo. Belíssimas imagens tiradas do Antigo Testamento.
Policarpo, Irineu e Orígenes, entre outros, desenvolveram magníficas
considerações a partir destas analogias. Depois da conversão de Constantino a
cruz surgiu como símbolo oficial do império e se tornou ainda mais um estímulo
para que os fiéis se sacrificassem pela causa do Evangelho e por seus irmãos na
fé. Tocantes as homilias de João Crisóstomo, Ambrósio, Agostinho e muitos
outros a exaltarem o papel da morte de Jesus na existência do crente. Na Idade
Média grandes teólogos aprofundaram ainda mais o sentido da paixão de Cristo
crucificado e notáveis os textos de Gregório Magno; Beda, o venerável; Tomás de
Aquino; Bernardo; Boaventura. As comunidades religiosas medievais
experimentaram, como havia ocorrido anteriormente, grande crescimento
espiritual ao cultuarem a cruz salvadora. A espiritualidade da cruz também
neste período da História, tornou suportável todos os sofrimentos e produziu
multidão de santos. É o carisma do sofrimento que promanou um dia do Calvário.
Na Idade Moderna e Contemporânea prosseguiu esta união dos fiéis com Jesus
sofredor, acentuando-se, sobretudo depois de Vicente de Paulo a visão de Cristo
a sofrer nos pobres e desamparados, nos membros padecentes do Corpo Místico.
Teólogos hodiernos, sobretudo na Alemanha, estão a acentuar esta pedagogia da
cruz, mostrando que ela é “a manifestação eminente de Deus e revela o modo como
se pode tornar operante a ressurreição na vida terrena do cristão”.
Conclusão
Cumpre de fato ao batizado olhar sempre para
Cristo crucificado a fim de compartilhar a fidelidade e a caridade de Jesus,
Ele “que nos amou e se entregou por nós a Deus como oblação e sacrifício de
agradável odor (Ef.5,2).
Saibamos valorizar este tesouro de graças que
é a preciosíssima cruz de Jesus. Ela é a árvore geradora da vida da graça. É
farol por entre as tribulações da existência. É a chave do céu. Foi por ela que
Cristo derrotou o inimigo do gênero humano e sanou as chagas do pecado.
Imitemos o apóstolo Paulo que podia
asseverar: “Quanto a mim não quero gloriar-me a não ser na cruz de nosso Senhor
Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” (Gl
6,l4)
Cumpre, porém, não apenas venerar e exaltar a
cruz que contemplamos aqui no Gólgota, mas é mister evangelizar com palavras e
obras, com o testemunho de vida, “para que não se torne inútil a cruz de Cristo”
(1 Cor l,17).
É necessário, além disto, estar crucificado
com Cristo (Gl 2l,19), ou seja, morto para o pecado e para tudo que o mundo
oferece e que contradiz o que o Mestre divino ensinou, fugindo de tudo que é
vergonhoso para o cristão e apartando os pensamentos do que está sobre a terra.
Do contrário se estará entrando no rol dos “inimigos da cruz de Cristo (Fl
3,18).
São Cirilo de Jerusalém nos apostrofa: “
Jesus foi crucificado em teu favor, Ele não pecara; e tu, não te deixarás
crucificar por aquele que em teu benefício foi pregado na cruz? Não estarás
fazendo um favor; primeiro recebeste. E mostras gratidão pagando a dívida a
quem por ti foi crucificado no Gólgota” (PG 33,802). É que na cruz nos
revestimos de Cristo e nos despojamos do velho homem numa valorização de tanto
sofrimento, mostrando-nos assim agradecidos pelo grande benefício recebido.
Aceitar a cruz de Jesus é uma grande sensatez.
É que, como bem se expressou Teodoro Estudita, “a máxima sabedoria, aquela que
floresceu na cruz, desafia a jactância da sabedoria do mundo e arrogância da
tolice. O tronco de todos os bens, elevado na cruz, extirpou todos os brotos da
maldade e da injustiça”(PG 99, 691 ss.)
Eis aí as grandes mensagens que devemos levar
do Calvário.
Farolize a cruz de Cristo toda nossa vida e
lembremo-nos sempre que no Calvário alguém por nós morreu porque muito nos
amou.
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