“Ele tomou sobre si nossas enfermidades e
carregou os nossos sofrimentos.” (Is 53,4)
“Eis
o homem!”
Ecoa
desde há dois mil anos a infame apresentação que o pusilânime Pôncio Pilatos
fez de Nosso Senhor, do balcão do pretório, enquanto a turba indecorosa,
ululante, escarnecedora, mais uma vez preferia as trevas à Luz.
(...)
“Eis o homem!”
Estamos agora
diante do lúgubre Calvário.
Aquele
ambiente de desolação se estende por todo o mundo, alcança o céu, influencia a
natureza.
“Ou um deus
está morrendo, ou o mundo está se acabando”, teria exclamado, espantado, um
astrônomo distante daquelas terras, alheio ao que acontecia em Jerusalém.
“Era
desprezado, era a escória da humanidade, homem das dores, experimentado nos
sofrimentos; como aqueles, diante dos quais se cobre o rosto, era amaldiçoado e
não fazíamos caso dele” (Is 53,3).
Estava
ali, suspenso no madeiro da ignomínia, a vítima em holocausto pela remissão dos
pecados do primeiro homem. Ali, naquele Lugar da Caveira, sobre a caveira do
primeiro homem – conforme rezava a tradição -, onde brotara a árvore da vida,
que resgataria das trevas a dignidade humana perante Deus, que tiraria do
exílio o novo homem.
“Jerusalém,
limpa o coração da maldade, a fim de que consigas a salvação” (Jr 4,14). É
preciso que o sangue que jorra da árvore da vida escorra pelo monte, alcance
Jerusalém e a lave da corrupção do mal que inebria o coração dos homens.
“Anunciam-se
desastres sobre desastres” (Jr 4,20).
Jerusalém
está desolada. O mundo todo está devastado. O universo fechou-se em luto. Do
céu, repartido por raios, derrama-se o pranto da natureza, pela frialdade dos
homens que levam à morte o seu Deus e Senhor.
“Jerusalém,
Jerusalém, converte-te ao Senhor teu Deus!”
(...)
Estamos
diante do lúgubre Calvário. É o altar do sacrifício. É onde o Cristo se
entregou ao Pai, em holocausto, para a nossa redenção.
Estamos
diante o altar onde o Deus humanado restitui-nos a graça, a vida eterna.
(...)
“Ouço
gritos como os da mulher ao dar à luz, gritos de angústia quais os do primeiro
parto. São os clamores da filha de Sião; geme e ergue as mãos: Desgraçada de
mim! Desfaleço ante os algozes.” (Jr 4,31).
Esses gritos,
porém, se ouve ao longe. É o arrependimento daqueles que lançaram às mãos
malditas o corpo de nosso amado Jesus, que entregaram ao seu juízo a dignidade
do Príncipe da Paz, Rei dos Séculos Futuros. É o grito da traição de quantos
abandonam Nosso Senhor pelo pecado. É o grito dos celerados que promovem a
violência, que corrompem a paz.
(...)
“Era
desprezado, era a escória da humanidade, homem das dores, experimentado nos
sofrimentos; como aqueles, diante dos quais se cobre o rosto, era amaldiçoado e
não fazíamos caso dele” (Is 53,3).
Vemos, hoje,
esse rosto desfigurado, esse corpo chagado, esse estado deplorável em cada
irmão desprezado pelos poderes públicos, em cada marginalizado pela sociedade,
em cada criança abandonada pela sorte e pela caridade fraterna que pouco se
pratica, em cada vítima da violência neste mundo em que o capitalismo e o
hedonismo disputam a conversão de almas, afastando-as de Nosso Senhor,
distraindo-as do caminho da salvação e seduzindo-as para a perdição eterna.
“Era
desprezado...” e ainda o é pelos católicos que, por respeito humano, se calam
diante das heresias que se dizem em todos os lugares e se omitem ante os
sacrilégios e profanações que se cometem em nossas comunidades. Católicos
relaxados que buscam se informar sobre tudo e sobre todos, menos conhecer a
Doutrina – o Catecismo ao menos – e contestam veementes as decisões da Igreja e
de seu Magistério.
Aquele
que se julga capaz de discordar da autoridade do Papa no que diz respeito aos
dogmas e à moral católica é um infame. Não é católico. É um seduzido por
Lúcifer, no seio da Igreja, para corrompê-la. E temos muitos desses por aí, até
no meio do clero, infelizmente, escandalizando muitos “cristos” de sua
prepotência e ignorância. Rezemos pela conversão dessas pobres almas, pois por
elas também verte o sangue redentor desta cruz.
“Era
desprezado...” e ainda o é pelos pais que se sujeitam aos paparicos dos filhos
mal-educados pela televisão, pela internet, pelas más companhias, soltos no
mundo, à mercê da carne e do demônio.
“Era
desprezado...” e ainda o é pelos governantes e homens públicos que se regalam
com o poder diante de bocas famintas, vendo corpos esquálidos pela enfermidade
e sem nenhuma assistência, omissos às vítimas das drogas, assistindo e por
vezes promovendo a beligerância entre os povos, alheios a tudo o que assegura
uma vida digna aos pobres, aos pequeninos acolhidos por Nosso Senhor.
“Era
desprezado...” pois estava destinado a descer aos infernos para libertar os
cativos do pecado de Adão. “Æstimatus sum cum descendentibus in lacum, factus
sum sicut homo sine adjutório, inter mortuos líber” – “Chegou a ser homem como
sem socorro, livre
entre os mortos”, canta o Salmista (Sl 87).
“Christus factus est pro
nobis obediens, usque ad mortem, mortem autem crucis” – “Humilhou-se a si mesmo, feito obediente até
à morte, e morte de cruz" (Fl 2, 8).
(...)
Meus
irmãos,
Estamos
diante do mais belo cenário da história da humanidade. Assistimos à
representação do mais importante drama de amor de todos os tempos. “De tal modo
Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer
não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus não enviou o Filho ao mundo para
condená-lo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3,16-17).
E
na contemplação desse quadro que aos céticos causa espanto, mas aos fiéis deve
inflamar a devoção a Deus, deparamo-nos com uma síntese da vida do cristão.
O
mandamento maior é o primeiro pelo qual, segundo os relatos do Evangelho, Nosso
Senhor teria clamado do alto do patíbulo: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o
que fazem” (Lc 23,34). É o amor ao próximo que nos lega como primeira de suas
últimas lições. Ele perdoa seus algozes. Ele se compadece da humanidade
pecadora e, não bastasse morrer por amor, ainda suplica a Deus por aqueles que
o maltratam. E constatamos as palavras de Santo Agostinho, quando nos diz que
“a Cruz não foi apenas lugar de sofrimento, mas cátedra de ensino”.
Na
sua agonia, vítima dos mais cruéis opróbrios dos infames verdugos que o
prenderam, o açoitaram, o maltrataram e, por fim, o pregaram na cruz, suas
palavras ainda resvalam esperança. “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no
paraíso” (Lc 23,43), é a promessa de salvação para aquele pobre homem, sabe-se
lá por que estava ali, crucificado ao lado de Jesus... É a esperança decorrente
da confiança em Deus. Os pecados daquele pobre homem que se definhava ao lado
de Jesus não foram tão sórdidos, a ponto de reconhecer a inocência do Redentor
e confiar, humildemente, nele: “Jesus, lembra-te de mim, quando tiveres entrado
no teu Reino” (Lc 23,42). Jesus, clamamos hoje, lembra-te de nós, míseros
pecadores, compassivo, agora e na hora de nossa morte.
A
caridade mais uma vez se esvai da Paixão de Cristo, fonte de misericórdia;
caridade para com os seus, caridade para com todo o mundo. Primeiramente se
dirige à sua mãe, a Virgem Dolorosa que ao pé da Cruz, em silêncio, contempla
aquele martírio e medita sobre os desígnios de Deus. “Mulher, eis aí teu filho”
(Jo 19,26). Quebrava o silêncio aquelas palavras de Jesus. Na pessoa do
discípulo amado, João, aquele que O acompanhou até o último instante, estavam
representados todos aqueles que acreditaram n’Ele e que O veriam em sua glória,
assim como Pedro, Tiago e João assistiram no Tabor, “cheio de graça e de verdade”
(Jo 1,14). E confirmavam esse comércio de seu amor as palavras dirigidas a
João: “Eis aí tua mãe” (Jo 19,27). Maria nos é dada como mãe, mãe de seu Corpo
Místico, mãe dos pecadores, mãe de todos aqueles que professam a mesma fé, que
Cristo é o Filho de Deus que veio ao mundo para redimir as nossas culpas,
nascido das entranhas puríssimas de uma Virgem predestinada, que naquele
instante derradeiro tornava-se co-redentora da humanidade, medianeira de todas
as graças.
E
em meio a todo aquele tormento, Jesus nos rege a lição da oração, a oração no
sofrimento, a oração na confiança nos desígnios de Deus, a oração nas
adversidades, na escuridão da vida espiritual. “Meu Deus, meu Deus, por que me
abandonastes” (Mt 27, 46b). Não era uma blasfêmia, mas uma oração confiante que
se desprendia dos divinos lábios, assim como fizera tantas vezes junto de seus
pais, José e Maria, nas sinagogas, nos momentos de recolhimento em que se unia
ao Eterno Pai. É a paciência nas adversidades que o Salmista em oração nos
ensina: “Fiquei mudo, em silêncio, privado da felicidade, mas a minha dor
exacerbou-se” (Sl 38,2). Na oração, oferecia-se Jesus a Deus pela nossa
salvação. Na oração, apresentemo-nos indefesos a Nosso Senhor para que ele faça
de nós instrumentos para a evangelização, concedendo-nos a graça da piedade, do
desapego, da compaixão, do abandono, do desejo interminável de poder
contemplá-lo face a face um dia, a graça da perseverança final.
(...)
Na
meditação da Paixão de Jesus, diante deste cenário, deparamo-nos com a figura
da Pecadora, agarrada ao pé da Cruz, presa como à tábua de salvação. Sim! Jesus
foi a salvação daquela mulher que doravante tornou-se “a penitente”: Maria
Madalena. A beleza externa, as vestes insinuantes, as fragrâncias sedutoras, as
jóias reluzentes... Nada mais tinha valor para aquela que não desejava outro
amor, senão a misericórdia do seu Senhor. E é a essa vítima da sedução do
demônio, da fragilidade da carne e da perversão do homem que Jesus suplica:
“Sitio” – “Tenho sede” (19,28).
“Dá-me
de beber” (Jo 4,7), foi a súplica do Mestre no poço de Jacó à Samaritana. Ele
tinha sede do amor da humanidade, de todos os homens, prefigurada naquela
mulher discriminada pela sua naturalidade. E é a ela que Jesus, cansado da
viagem, pede que lhe sacie. Ele quer o amor de todos, indistintamente.
“Tenho
sede” é a súplica de Jesus na Cruz, dirigindo-se à penitente.
Diz
uma lenda que, ao ouvir a súplica, Maria Madalena correu até uma talha com água
que estaria por perto e tentara matar a sede do Senhor, mas ele recusou a
beber. E teria novamente insistido: “Tenho sede”. Lembrara, então a discípula
que no palácio de Pilatos havia um licor considerado saboroso, vindo de Roma.
Em disparada desceu Madalena do monte Calvário e foi conseguir, por meio de
influências, um pouco daquela bebida considerada refrescante, querendo
proporcionar alívio ao seu Mestre. E Jesus também recusou.
Ah,
a dedicada mulher que acompanhava Jesus e seus discípulos desde a Galiléia não
desanimou. Desta vez foi até o Templo para buscar uma taça de um vinho
considerado puro e de tão seleta safra de uvas que era oferecido naquele lugar
sagrada. Debalde retornou pressurosa, a tempo de saciar a sede de Jesus. Ele
recusou tomar do saboroso líquido.
Sem
saber o que fazer, quedou-se em convulsivo pranto ao pé da Cruz. Sentia-se
incapaz de atender ao último pedido que lhe dirigia seu amado Jesus.
Mais
uma vez o Senhor lhe pedia: “Tenho sede”.
E
como numa inspiração sobrenatural, Madalena sentiu-se tocada pela graça e com
as mãos concavadas, recolheu suas lágrimas e as ofereceu ao seu Redentor.
Tinha
sede, Nosso Senhor, das lágrimas daquela mulher; ainda tem sede, Nosso Senhor,
de nosso arrependimento.
Eis,
caríssimos irmãos, neste passo o fruto da conversão: a misericórdia, o amor.
Diz-nos a bem-aventurada Teresa de Calcutá que “’Tenho sede’ é uma palavra
muito mais profunda do que se Jesus tivesse simplesmente dito ‘Amo-vos’”. Foi
seu último pedido à humanidade pecadora antes de se entregar definitivamente ao
Pai: “Tenho sede de vosso amor”.
(...)
“Tudo
está consumado” ( Jo 19,30).
“Pai, nas tuas
mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46)
Deixam-nos,
suas últimas palavras de abandono à vontade do Pai, o exemplo da perseverança
final em tudo, pois ele perseverou até à morte. E se isso o fez, foi tão
somente por amor, sob a influência do sentimento da Trindade em que as
aspirações são comuns. E com São Bernardo aprendemos, ainda melhor, a lição do
amor. Diz-nos o abade de Claraval: “A medida para amar a Deus é amá-lo sem
medida”.
Sim, meu caros
irmãos, pois Deus nos amou de tal modo que nos deu seu filho para remir os
nossos pecados e assegurar-nos a bem-aventurança eterna.
(...)
“Tudo está
consumado”.
Cessaram-se os
trovões, não se ouve nenhum ruído estranho, revolto. Apenas a chuva ainda
insiste em prantos pela morte de Deus.
Avança a hora
nona. Daqui a pouco cai a noite. Já será o dia da Páscoa.
Para Maria
Santíssima e aqueles amigos que ali estavam o tempo não mais importava. Queriam
ficar naquele monte, altar sagrado, em adoração perene.
Mas não
podiam. Tudo já estava consumado.
(...)
E aquele
instante de adoração se interrompe com a chegada de José de Arimatéia e
Nicodemos.
Era a
manifestação que faltava, daqueles que acompanhavam o Senhor à distância,
durante toda a sua vida pública, mas por respeito humano não se manifestavam.
Eram figuras proeminentes entre os judeus.
José de
Arimatéia fazia parte do Conselho que condenou Jesus, mesmo tendo concordado
com aquele desfecho. “Ele não havia concordado com a decisão dos outros nem com
os atos deles. Originário de Arimatéia, cidade da Judéia, esperava ele o Reino
de Deus”, relata-nos São Lucas (Lc 23,51). Já Nicodemos era fariseu, príncipe
dos judeus. Certa vez procurou o Mestre à noite, às escondidas, e Jesus o
preparou para aquilo que vira: “Como Moisés levantou a serpente no deserto,
assim deve ser levantado o Filho do Homem, para que todo homem que nele crer
tenha a vida eterna” (Jo 3,14-15). Nicodemos estava convencido da divindade de
Nosso Senhor.
E neste
momento, em que os amigos de Jesus, quase todos, os seus seguidores se escondem
na penumbra da covardia, esses dois homens não temem seus pares no Conselho
infame que condenou o Senhor e vão até Pilatos reclamar o corpo do Divino
Redentor.
(...)
Chegam os dois
senhores ao monte Calvário, com as faixas, os lençóis e os ungüentos.
Aproximam-se
de Maria e lhe pedem permissão para enterrar seu filho, nosso amado Jesus.
Diante da cruz
são tomados por admiração e como o centurião exclamam no íntimo de seu coração:
“Na verdade, este homem era um justo” (Lc 23,47).
(...)
Primeiro,
retiram a TABULETA que não escarnecia os cristãos, nem afrontava os judeus. Era
a simples revelação constatada, ainda que indeliberadamente, por Pilatos:
“Jesus Nazareno Rei dos Judeus”. Estas palavras era uma profissão de fé
incontestável, por isso, os dois bons homens não se contiveram e certamente
depuseram-lhe um ósculo de devoção. Cumpriam-se as palavras de Zacarias:
“Naquele dia, procurarei exterminar todo o povo que vier contra Jerusalém.
Suscitarei sobre a casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém um espírito
de boa vontade e de prece, e eles voltarão os seus olhos para mim. Farão
lamentações sobre aquele que traspassaram, como se fosse um filho único;
chorá-lo-ão amargamente como se chora um primogênito! Naquele dia haverá um
grande luto em Jerusalém, como o luto de Adadremon no vale de Magedo. A terra
inteira celebrará esse luto, família por família; a família da casa de Davi à
parte, com suas mulheres separadamente” (Zc 12,9-12).
(...)
Agora, retiram
com muito cuidado a COROA DE ESPINHOS que está escalpelando a fronte do
Redentor.
Ah, os
espinhos!
Os espinhos
que menos simbolizam o pecado, mas muito as suas conseqüências. A terra “te
produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra” (Gen 3,18). Esta
foi a sentença de Deus, após a traição de Adão. “Os perversos sofrem com os
espinhos” (Pv 22,5). Os espinhos é conseqüência da desobediência, por isso
Nosso Senhor os tinha em sua fronte, ele carregava nossas culpas até a morte.
“Ele tomou sobre si nossas enfermidades, e carregou os nossos sofrimentos: e
nós o reputávamos como um castigado, ferido por Deus e humilhado. Mas ele foi
castigado por nossos crimes, e esmagado por nossas iniqüidades; o castigo que
nos salva pesou sobre ele; fomos curados graças às suas chagas” (Is 53,4-5).
Jesus usou uma coroa de espinhos, para que pudéssemos merecer a coroa
imperecível da glória, como nos assegura São Pedro em sua primeira carta (5,4),
a coroa da vida (Tg 1,12), coroa da justiça (2Tm 4,8). “Sê fiel até a morte e
dar-te-ei a coroa da vida” (Ap 2,10)
(...)
“Ó vos omnes qui transitis per
viam, attendite et videte si es dolor sicut dolor meus” – “Ó vós todos os que passais pelo caminho,
atendei e vede se há dor semelhante à dor que me atormenta” (Lm 1, 12).
Eis o corpo
desfigurado!
Aos poucos
vai-se notando quão ferido está pregado à Cruz.
Ai, meu
Redentor! Miserável sou, por ser causa de tantos tormentos com meus pecados,
reabrindo-lhes as chagas que, misericordiosas, me lavam com o Seu sangue
sacrossanto.
Eis o corpo
desfigurado de meu Senhor!
Contemplemo-lo,
cheio de opróbrios, vítima das mais cruéis violências, desde as blasfêmias
contra um Deus até as mais torpes bofetadas, agressões morais e físicas que a
soldadesca indecorosa, instigada pelos pérfidos judeus, lançaram contra nosso
amantíssimo Senhor.
“Attendite et
videte...”
Avança a
hora...
A noite se
aproxima...
É preciso que
retirem depressa o corpo de Nosso Senhor da Cruz.
Com muito
cuidado retiram o prego que prende a MÃO DIREITA do Divino Redentor ao madeiro.
Ó mão bendita,
que abençoou as multidões!
Ó mão
sacrossanta, que tocou nas feridas dos enfermos e as curou!
Ó mão
benfazeja, que acenou o caminho a seguir!
Ó mão paterna,
que apontou o erro para que não mais fosse cometido!
Ó mão
fraterna, que a estendeu ao próximo!
Retirai, pois,
esse agudo cravo, para que possa retribuir, com esse ato de misericórdia,
tantos benefícios!
(...)
Retirai,
também, ó bons homens, o crave que prende a MÃO ESQUERDA de Jesus à Cruz.
Permite-me,
Senhor, que eu esteja ao menos à tua esquerda, contemplando essa mão com a qual
te amparavas no cajado enquanto guiavas o Teu redil.
Permite-me,
Senhor, venerar essa mão que, oculta de tua destra, também acariciava a tantos
que em Ti buscavam consolo.
Permite-me,
Senhor, oscular essa mão chagada para que minha palavra jamais seja confundida
ou causa de escândalo e sirva, tão somente, para cantar as Tuas glórias.
(...)
Retirai,
por fim, o cravo que prende os PÉS de Nosso Senhor.
Retirai-o
com cuidado, para que nossa aspereza não fira ainda mais o corpo já inerte de
Jesus Cristo, machucado terrivelmente pela violência daqueles que não aceitam o
seu Reino.
“Rodeia-me uma
malta de cães, cerca-me um bando de malfeitores. Traspassaram minhas mãos e
meus pés” (Sl 21,17).
Cães numerosos
rodeiam o Calvário até nossos dias.
Cães de uma
moral corrompida...
Cães de uma
conduta infame, que se debruçam sobre suas misérias, ocultando-as, e obstam
como podem o projeto de salvação para o qual devemos todos cooperar.
Desgraçados,
aqueles que preferem mais as trevas à Luz. Não querem que estes braços voltem a
abençoar, não permitirão que estes pés pisem novamente o pó dos caminhos
humanos, levando a Boa Nova da paz e da esperança aos pobres e excluídos (Is
52,7). Preferem que Deus continue encerrado e controlado dentro de seus templos
suntuosos, rejeitando o templo vivo somos cada um de nós, que é o Corpo Místico
de Cristo (1Cor 6,19), pois pretendem continuar usando-o, manipulando-o,
violentando-o, e massacrando-o a seu bel prazer.
(...)
Desceram o corpo
de Jesus da Cruz. Desçamos a imagem da cruz, em silêncio. Desçamo-la com
cuidado para que a nossa aspereza, nossa falta de fé e de sensibilidade não
fira ainda mais o corpo de nosso Senhor, já tão ultrajado pelos açoites e pelos
nossos pecados. Vamos colocá-la no esquife para sair em procissão.
Em silêncio vamos pensando: como tenho correspondido a tão grande amor? como
posso corresponder ainda mais? Vamos caminhado com fé e esperança.
(...)
Levai agora,
José de Arimatéia e Nicodemos, o corpo sacrossanto de Jesus até Sua Mãe.
Ela o toma nos
braços.
Maria que
embalou o corpo frágil do Menino Jesus, antes de recliná-lo no presépio, agora
o tem, frágil, maltratado, desfigurado, em seus braços antes de entregá-lo à
sepultura.
“Dolores inferni
circumdederunt me” – “Dores de inferno me cercaram” (Sl 17,6).
Relata-nos o célebre
padre Antônio Vieira que “foram tão excessivos os tormentos da Virgem na Paixão de seu Filho, que diz S.
Bernardo que, se se repartissem por todas as criaturas viventes, bastariam a
tirar a vida a todas. Mais. Era tão grande o
amor da Senhora, e o afeto temíssimo com que desejava não se apartar da presença e vista de seu Filho,
que teria por grande benefício ou morrer,
para que ele não morresse, como dizia Davi na morte de Absalão, e já que isto não
pudesse ser, ao menos morrer juntamente com ele” (“Sermãos das Dores da
Sacratíssima Virgem Maria”, 1642).
“Plorans
ploravit in nocte…” – “Ela chora pela noite adentro, lágrimas lhe inundam as
faces”
“Non est qui
consoletur eam…” – “Ninguém mais a consola de quantos a amavam. Seus amigos
todos a traíram, e se tornaram seus inimigos” (Lm 1,2).
(...)
“Nesta vida
temem os homens a morte, e todos andam fugindo dela”, brada, ainda, das
centúrias passadas o Crisóstomo Português.
Nesta vida
temem os homens a morte, repito, porque temem ter que se apresentar ao Tribunal
Divino e responder pelas atrocidades que tanto afligem o Coração Sagrado de
Jesus.
(...)
Correi,
infelizes. Correi pressurosos em busca do perdão de vossos pecados.
Celerados que
renovam os flagelos a Nosso Senhor, emendai de vida enquanto há tempo, porque a
“propriedade dos tormentos do
inferno não só dura porque atormenta
duramente, senão também porque,
atormentando, endurece a quem atormenta, e matando, imortaliza para sempre matar. Nesta vida temem os homens a morte, e
todos andam fugindo dela; no inferno, pelo
contrário, todos desejam morrer, e a morte foge de todos” (VIEIRA op. cit.).
É o que vos espera, todos
aqueles que abandonam sua Cruz no caminho e fogem do jugo de Nosso Senhor.
Hipócritas, covardes, infelizes, preferem os regalos da vida mundana, da
riqueza vil, das diversões, da sensualidade, dos prazeres anormais, da
pederastia, de toda forma de incontinência, é o que vos espera: o inferno, pois
“talis vita, finis ita”, diz o jargão latino – “Tal como se vive, se finda”.
Vivestes longe de Deus, na sua ausência permanecerão após a morte. Desejarão,
então, morrer, mas a morte fugirá de vós.
Diz-nos Santo Agostinho que
foi “Deus quem se cansou, pois está nessa estrada há séculos,
milênios... em busca da humanidade. Deus está em busca do homem. Onde Ele
poderia parar, pousar, repousar? No poço de nosso coração, na alma de cada um
de nós. Talvez cada um de nós já tenha vivido o essencial da experiência
mística e espiritual: a descoberta de que não somos nós, mas Deus quem nos
busca. Era Deus quem nos buscava esse tempo todo. É difícil deixar-se achar,
deixar-se amar ‘tal como somos’. A estrada é longa até esse ponto da aceitação
total.”
Iniciemos,
caríssimos, agora, essa caminhada que nos conduzirá ao Pai.
Iniciemos,
agora, essa caminhada, contritos, penitentes, com sinceros propósitos de emenda
de vida, para que no dia em que formos chamados a juízo, possamos ouvir de
nosso amantíssimo Jesus: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei em herança o
Reino que foi preparado para vós” (Mt 25,34).
Padre
Wagner Augusto Portugal
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