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Quarta-Feira de Cinzas – C.

 


“Ó Deus, vós tendes compaixão de todos e nada do que criastes desprezais: perdoais nossos pecados pela penitência porque sois o Senhor nosso Deus”. (cf. Sb 11,24s.27).

 

Meus queridos Irmãos,

 

            Iniciamos com a imposição das cinzas o grande retiro da Quaresma. A Quaresma é o tempo de Deus em que os homens e as mulheres são convidados a refletir acerca da nossa experiência cristã. Fazemos nossa parte na construção de uma sociedade justa e fraterna, com auxílio aos irmãos excluídos? Quaresma é tempo de mudança, de maior comprometimento, de suprema fidelidade a Deus e de serviço generoso aos irmãos, a comunidade de fiéis.  A conversão é a primeira atitude que cada cristão deve se propor neste tempo de mudança de vida. A conversão séria vem do reconhecimento da pobreza e fragilidade humana, e de que só Deus pode capacitar-nos a fazer algo, inclusive reconhecer-se pecador e necessitado da sua infinita misericórdia.

            A Quaresma nos conduz a Jerusalém. Não a cidade de Jerusalém, mas ao evento histórico da Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Nas mãos de Jesus nós iremos trilhar o itinerário da eternidade. Quaresma que significa quarenta dias de profunda reflexão sobre os mistérios de nossa fé, sobre a vida, a paixão, a morte e a ressurreição do Senhor Jesus.

            Nosso encontro neste tempo será com Deus, na pessoa do Cristo sofredor, morto e ressuscitado. Jesus caminha na quaresma conosco. Caminhada que envolve o nosso corpo inteiro e, especialmente, o nosso coração. Caminhada de fé. Caminhada de oração. Caminhada de penitência. Caminhada de conversão.

 

Amigos e Amigas,

 

            Recebemos hoje as cinzas. Converter-se significa voltar-se para o regaço de Deus, para a amizade com o Criador. Conversão é um caminho muito árduo que precisa e requer penitência e mudança de vida. Quaresma é tempo de doce oração, de grande mudança de vida e de penitência para que Deus estenda a sua mão aos pecadores para que possam ver a Deus. Simboliza a fragilidade humana as cinzas que são impostas aos fiéis para assinalar o início da Quaresma. Cinzas que simbolizam a nossa pobreza, ou melhor, a nossa nulidade, é a cinza que recebemos hoje sobre a nossa fronte. As cinzas nos recordam de imediato a origem e o destino de nosso corpo humano, ou seja, que tudo foi criado do pó e ao pó voltará.

            Este pó que acompanhará a nossa caminhada quaresmal, que lembrará a nossa contingência de pecadores, de homens contingentes, que nos acompanha para crer e vivenciar a ressurreição do Senhor Jesus. É a Ressurreição de Jesus que nos diz e nos ensina que, embora nosso corpo seja destinado ao pó, nossa pessoa tem um destino eterno, tem um destino em Deus, o autor e dador da Vida eterna.

 

Irmãos e Irmãs,

 

            Deus é a razão e o primeiro motor de nossa conversão. A conversão é um ato de acolhimento daquilo que o Senhor nos diz e pede de cada um de nós. O voltar-se para Deus implica uma radical mudança no modo de pensar e no modo de agir dos homens e mulheres. Temos que nos comportar, agir e fazer conforme a vontade de Jesus Cristo.

            Qual é à vontade de Deus? É à vontade que nos deixou legada por Jesus Cristo. Converter-se implica decentrar-nos de nós mesmos e centralizar a nossa vida e nossas metas em Jesus. Temos que ter a atitude do Evangelho de domingo passado: sermos misericordiosos e aplicar a misericórdia, o perdão, à acolhida dos inimigos como meta de nosso seguimento cristão. Amor gratuito! Amor generoso! Acolhida sincera, sem reservas.

 

Prezados Irmãos,

 

            Todos nós somos convidados a três atitudes neste tempo forte de conversão e de mudança de vida. Ainda paira sobre mim a advertência de meu austero Vigário de infância: Na quaresma nada de orgias e nem de bebedeiras! É tempo de Deus, para Deus voltado para cada um de nós, para a nossa intimidade com o Criador!

            As três atitudes deste tempo forte são: a esmola, o jejum e a oração intensa. A esmola como significado de nosso desapego dos bens deste mundo, que nos leva a extinguir a avareza. A esmola que mexe em nosso bolso e nos faz sermos mais abertos ao outro, ensinando a repartir. O Jejum como abstinência de alimentos e bebidas, ou mesmo do vício como o cigarro. Jejum tão importante lembrando a advertência de Jesus: “Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (cf Mt 4,4).  A oração coroa a esmola e o jejum: oração com o coração. Nossa oração deve partir do coração e ser participada o tempo todo pelo coração, ou seja, pelo nosso ser inteiro.

 

Caríssimos irmãos,

 

            A Primeira Leitura (cf. Jl 2,12-18) nos convida a “Rasgar nossos corações, não somente as vestes”. Este trecho é uma exortação à penitência, ao jejum e à súplica. Logicamente que este apelo sempre dará resultado quando nós nos abrirmos a este triple motivador do tempo quaresmal. Penitência, etimologicamente significa voltar. O Jejum é tão geral que mesmo os recém-casados não são excluídos de sua pia observância. Os sacerdotes articulam este ritmo comunitário ao povo de Israel, e Deus, cioso para “salvar sua boa reputação” junto às nações, teve a compaixão de seu povo.

Joel é um sacerdote-profeta, que vive no Templo, depois do exílio. Fiel ao serviço da Casa de Deus, exorta o povo, que passa por uma grave carestia provocada por uma invasão de gafanhotos (cf. Jl 1, 2-2, 10), à oração e à conversão. O próprio culto, no templo, tinha cessado (cf. Jl 1, 13.16). O profeta, que sabe ler os sinais dos tempos, anuncia a proximidade do “dia do Senhor”, e convida o povo ao jejum, à súplica e à penitência (cf. Jl 2, 12.15-17). “Convertei-vos”, grita o profeta. O termo hebraico subjacente é schOb que significa arrepiar caminho, regressar. O povo que virara costas a Deus, devia voltar novamente o coração para Ele, e retomar o culto no templo, um culto autêntico, que manifestasse a conversão interior. O povo pode voltar novamente para Deus, porque Ele é misericordioso (cf. Jl 2, 13), e, também, pode mudar de ideia e voltar atrás (cf. Jl 2, 14).

Um amor sincero a Deus, uma fé consistente, e uma esperança que se torna oração coral e penitente, darão ao profeta e aos sacerdotes as devidas condições para implorarem a compaixão de Deus para com o seu povo.

 

 

Prezados irmãos,

 

            A Segunda Leitura (cf. 2 Cor 5,20-6,2) fala que o tempo da quaresma é “o tempo propício” de conversão e de mudança de vida. Apaixonado pelo “ministério apostólico da reconciliação”, Paulo exorta os coríntios a aproveitarem a reconciliação oferecida por Cristo, que assumiu nosso pecado, e a não deixar passar a oportunidade, já que agora é o tempo oportuno de conversão.

            “Reconciliai-vos com Deus”, é o apelo de São Paulo. A reconciliação é possível, porque essa é a vontade do Pai, manifestada na obra redentora do Filho e no poder do Espírito que apoia o serviço dos apóstolos. O v. 21 é o ponto alto do texto, pois proclama o juízo de Deus sobre o pecado e o seu incomensurável amor pelos pecadores, pelos quais não poupou o seu próprio Filho (cf. Rm 5, 8; 8, 32). Cristo carregou sobre si o pecado do mundo e expiou-o na sua própria carne. Assim, podemos apropriar-nos da sua justiça-santidade. O Inocente tornou-se pecado para que nós pudéssemos tornar justiça de Deus. E, agora, o tempo favorável para aproveitar essa graça: deixemo-nos reconciliar (katallássein) com Deus. O termo grego indica a transformação da nossa relação com Deus e, por consequência, da nossa relação com os outros homens. Acolhendo o amor de Deus, que nos leva a vivermos, não já para nós mesmos, mas para Aquele que morreu e ressuscitou por nós (w. 14s.), podemos tornar-nos nova criação em Cristo (5, 18).

 

            Caros irmãos,

 

            O Evangelho (Mt 6,1-6.16-18) fala da Esmola, do Jejum e da oração no oculto. São Mateus, neste trecho, apresenta três reflexões de Jesus em relação às boas obras judaicas: a esmola, a oração e o jejum. Mateus mostra que estas três obras boas devem ser feitas por seu valor intrínseco, que só Deus vê, e não para serem vistas pelos homens.

Jesus pede aos seus discípulos uma justiça superior à dos escribas e fariseus, mesmo quando praticam as mesmas obras que eles.: “Guardai-vos de fazer as vossas boas obras diante dos homens, para vos tornardes notados por eles”. Agora aplica esse princípio a algumas práticas religiosas do seu tempo: a esmola, o jejum e a oração. Há que estar atentos às motivações que nos levam a dar esmola, a orar, a jejuar, porque o Pai vê o que está oculto, os sentimentos profundos do coração. Se buscamos o aplauso dos homens, a vanglória, Deus nada tem para nos dar. Mas se buscamos a relação íntima e pessoal com Ele, a comunhão com Ele, seremos recompensados. Se não fizermos as boas obras com reta intenção somos hypokritoi, isto é, comediantes, e mesmos ímpios, de acordo com o uso hebraico do termo.

Jesus, no Evangelho, mostra-nos qual deve ser a nossa atitude quando praticamos obras de penitência (tais como a esmola, a oração, o jejum), e insiste na retidão interior, garantida pela intimidade com o Pai. Eram essas a atitude e a orientação do próprio Jesus em todas as suas palavras e obras. Nada fazia para ser admirado pelos homens. Nós podemos ser tentados a fazer o bem para obtermos a admiração dos outros. Mas essa atitude, por um lado, fecha-nos em nós mesmos, por outro lado projeta-nos para fora de nós, tornando-nos dependentes da opinião dos outros.

Há, pois, que fazer o bem porque é bem, e porque Deus é Deus, e nos dá oportunidade de vivermos em intimidade e solidariedade com Ele, para bem dos nossos irmãos. Estar cheios de Deus, viver na sua presença, é a máxima alegria neste mundo, e garante-nos essa mesma situação, levada à perfeição, no outro.

 

Irmãos e Irmãs,

 

            O cristão ao apresentar-se diante de Deus seja na comunidade reunida em assembléia, seja no silêncio de seu coração, recorda uma outra libertação: a que libertou Jesus da morte e o fez passar para a glória, a passagem não do anjo exterminador, mas do Cristo, que significa também nossa passagem da morte para a vida. Jesus é o Senhor... Deus o ressuscitou dos mortos, conforme nos adverte a segunda leitura. Para poder proclamar esta fé, na noite do novo dia, ou seja, na Páscoa, o cristão passa por um tempo de quarentena, para sair completamente renovado. Esse é o significado da Quaresma.

            Precisamos do treinamento em nossa opção por Deus. A partir da esmola, do jejum e da oração vamos fazendo de nossa vida o que nos pede a oração da coleta de hoje: tornar nossa vida conforme à do Cristo.

            Certamente não é fácil aceitar ser cinza. Contudo, a fé em Jesus Cristo ressuscitado faz com que a vida renasça das cinzas. Jesus Cristo faz brotar a vida, onde o ser humano reconhece sua condição de pecadores. É entrar em atitude pascal. A imposição das cinzas não constitui um mero rito a ser repetido anualmente. É celebração da vocação do ser humano, chamado a imortalidade feliz, contanto que realize o mistério pascal da morte e vida em sua vida terrena.

            Junto com a Quaresma, no Brasil, abriremos a Campanha da Fraternidade 2025 (CF), que tem como Tema: “Fraternidade e Ecologia Integral” e como Lema: “Deus viu que tudo era muito bom!”(Cf. Gn 1, 31). A Campanha da Fraternidade aborda outra vez a temática ambiental, com o objetivo de “promover, em espírito quaresmal e em tempos de urgente crise socioambiental, um processo de conversão integral, ouvindo o grito dos pobres e da Terra” (Objetivo Geral da CF 2025).  “Estamos no decênio decisivo para o planeta! Ou mudamos, convertemo-nos, ou provocaremos com nossas atitudes individuais e coletivas um colapso planetário. Já estamos experimentando seu prenúncio nas grandes catástrofes que assolam o nosso país. E não existe planeta reserva! Só temos este! E, embora ele viva sem nós, nós não vivemos sem ele. Ainda há tempo, mas o tempo é agora! É preciso urgente conversão ecológica: passar da lógica extrativista, que contempla a Terra como um reservatório sem fim de recursos, donde podemos retirar tudo aquilo que quisermos, como quisermos e quanto quisermos, para uma lógica do cuidado”. A Ecologia reaparece no conjunto das CF’s de uma forma nova, como Ecologia Integral, conceito tão caro ao Papa Francisco e que é tão importante no seu projeto de um Novo Humanismo Integral e Solidário, para o qual são bases a Amizade Social, tratada na CF 2024, a Educação, tratada na CF 2022 e no Pacto Educativo Global, o Diálogo, tratado na CF 2021 e a misericórdia ou Compaixão, tratada na CF 2020. “Para nós, a Ecologia Integral é também espiritual. Professamos com alegria e gratidão que Deus criou tudo com seu olhar amoroso. Todos os elementos materiais são bons, se orientados para a salvação dos seres humanos e de todas as criaturas. Assim, “Deus viu que tudo era muito bom!” (Gn 1,31)”.

Fica latente um questionamento: como nossa comunidade cristã pode cooperar na reconciliação de todo gênero humano com Deus? Como podemos colaborar na salvação de todos os que conosco convivem? Pensar na Campanha da Fraternidade, para além do pessimismo em relação à ação humana sobre a natureza, procurando perceber nossa participação, mesmo que pequena, nesse movimento de cuidado integral com o planeta Terra. A comunidade é chamada a viver, nesta Quaresma de 2025, gestos de penitência e oração. O jejum, a oração e a esmola podem ser atitudes verdadeiras, não apenas intenções que temos e nem sempre cumprimos.

Enfim, as cinzas sobre a cabeça devem despertar em nós a consciência de que todos procedemos do pó. O reconhecimento dessa humilde condição humana nos unifica e quebra toda pretensão de poder, de vaidade e de sobreposição aos outros. Que novos seres humanos, mais solidários, renasçam dessas cinzas!

Que Deus nos assista para que possamos ao fim dos exercícios quaresmais, com o auxílio da esmola, do jejum vivenciar bem a oração, bem como de uma reflexão apaixonada do tema e do lema da Campanha da Fraternidade caminhar para viver intensamente a ressurreição de Cristo que ilumina a nossas práxis cristã. Amém!

Padre Wagner Augusto Portugal.


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