“O Senhor se tornou o meu apoio, libertou-me da angústia e me salvou porque me ama” (cf. Sl 17,19-20).
Neste 8º Domingo do Tempo Comum, em
que nós faremos uma pausa no Tempo Comum, com o início da Quaresma na próxima
Quarta-Feira de Cinzas, nós iremos encerrar, a Mãe Igreja convida a Comunidade
Eucarística a uma atitude de sinceridade em todo o seu modo de ser e de agir. A
sinceridade consiste na transparência daquilo que é verdadeiro. E para o
testemunho do cristão seja verdadeiro deve começar pela conversão pessoal. Nada
mais oportuno do que falar de conversão pessoal nos dias em que se comemora,
civilmente, as festas de Carnaval.
Neste domingo litúrgico chamado de oitavo domingo do Tempo Comum
nós vivenciamos, na esfera civil, o domingo de Carnaval. Isso para dizer que
daqui a três dias daremos início a um grande período de mudança de vida, de
conversão e de seguimento mais íntimo de Jesus com a vivência da Quaresma.
Assim
neste tempo em que os homens e as mulheres estão voltados para os chamados
prazeres do mundo, se afastando paulatinamente de Deus, de sua Palavra, de seu
Banquete Eucarístico, de seu Seguimento, de sua Missão, todos nós somos
convidados a fazer uma pré-quaresma, nos colocando como imitadores da
misericórdia de Deus.
A
liturgia da Santa Igreja nos mostra que Jesus propôs a salvação aos pobres,
como destinatários especiais, ou melhor, preferenciais. A graça e a gratuidade
de Deus se manifestam aos pobres, aos pequenos, aos excluídos, aqueles que
estão à margem da sociedade.
Caros irmãos,
A primeira leitura nos ensina que (cf.
Eclo 27,5-8) que não devemos elogiar a ninguém, antes de ouvi-lo falar. Para se
chegar a uma atitude de transparência, de simplicidade e de verdade, importa
partir do conhecimento de si mesmo, conforme nos ensina o Livro do
Eclesiástico. É preciso provar-se a si mesmo como o faz a peneira, separando as
impurezas das sementes ou como o vaso de argila provado pelo fogo.
Recorrendo a três imagens (a do crivo que, quando
agitado, coloca à vista as impurezas do trigo; a do forno, que obriga o vaso do
oleiro a demonstrar a sua excelência; a do fruto, que revela a qualidade do
campo), o Livro do Eclesiástico ensina que a palavra revela claramente o íntimo
do coração do homem. É possível ao homem fingir, enganar, disfarçar, ser ator e
encenar determinados tipos de comportamento. Mas a palavra revela-o e põe a nu
os seus sentimentos mais profundos. A conclusão é, pois, cristalina: não devemos
deixar-nos condicionar pela primeira impressão ou por gestos mais ou menos
teatrais que nada significam: só a palavra expressa a abundância do coração.
Hoje as pessoas falam de tudo,
opinam sobre tudo e falam de todos. Parece que pelas mídias sociais as pessoas
dão opinião de coisas que jamais viram ou ouviram. Antes de falar, é preciso
escutar, para conhecer-se a verdade. Antes de pregar aos outros, importa
aplicar a mensagem do Santo Evangelho a si mesmo. Antes de querer ensinar os
outros, importa viver a sabedoria. Antes de participar da obra evangelizadora
de Cristo, será necessário converter-se pessoalmente, deixar-se evangelizar.
Quantas vezes temos de reformular as nossas
impressões acerca de uma pessoa depois de a conhecermos bem. Não podemos, pois,
deixar-nos condicionar pela primeira impressão. Um juízo apressado pode
levar-nos a ser tremendamente injustos e a marginalizar pessoas muito válidas e
com um grande potencial; também pode, ao contrário, levar-nos a confiar
totalmente em pessoas que, investidas de cargos de responsabilidade, acabam por
destruir coisas que levaram muito tempo a ser edificadas.
Prezados irmãos,
O Santo Evangelho (cf. Lc 6,39-45)
mostra a fala de Jesus, que um cego não pode guiar outro cego. Não existe
discípulo superior ao mestre. Par se poder dar é preciso ter. A árvore boa se
conhece por seus frutos.
A grande tentação para os homens de
hoje, das mídias sociais sobretudo, é a de parecer e de aparecer. Mas o que
importa para o cristão é o ser. Andamos nos maquiando, gostamos de usar
máscaras para parecer o que não somos. Gostamos de manifestar, infelizmente,
uma falsa e superficial felicidade nas mídias, que não correspondem à
realidade.
São Lucas ensina que Jesus exige a
transparência, a sinceridade. Sinceridade vem da expressão latina “sine cera”,
sem cera, isto é, sem maquiagem, sem máscara. Isso exige que reconheçamos a
verdade, aquilo que somos de fato. É a humildade, a simplicidade. Humildade vem
da palavra “húmus”, chão, barro, limo. É a nossa condição. Simplicidade vem do
latim, também, significa sem dobra. O
contrário de duplicidade, ou seja, com duas partes, com uma dobra, ou
complicado, isto é, com dobras. As dobras escondem as coisas, impedem a
transparência.
São Lucas
ensina que o verdadeiro mestre será sempre um discípulo de Jesus, o mestre por
excelência; e a doutrina apresentada não poderá afastar-se daquilo que Jesus
disse e ensinou (cf. Lc 6, 39-40). Quando alguém apresenta a própria doutrina e
não as propostas de Jesus está, muito provavelmente, a desorientar os irmãos. A
comunidade deve ter isto presente, a fim de não se deixar conduzir por caminhos
que a afastem do verdadeiro caminho que é Jesus.
Um segundo desenvolvimento, diz respeito ao
julgamento dos irmãos (cf. Lc 6, 41-42). Há na comunidade cristã pessoas que se
consideram iluminadas, que “nunca se enganam e raramente têm dúvidas”, muito
exigentes para com os outros, que não reparam nos seus telhados de vidro quando
criticam os irmãos. Apresentam-se muito
seguros de si, às vezes com atitudes de autoridade, de orgulho e de prepotência
e são incapazes de aplicar a si próprios os mesmos critérios de exigência que
aplicam aos outros. Esses são (a palavra é dura, mas não a podemos “ficar
calados porque estas pessoas são”) “hipócritas”: o termo não designa só o homem
dissimulado, falso, cujos atos não correspondem ao seu pensamento e às suas
palavras, mas equivale ao termo aramaico “hanefa” que, no Antigo Testamento,
significa, ordinariamente, “perverso”, “ímpio”.
Pode o verdadeiro discípulo de Jesus ser
“perverso” e “ímpio”? Na comunidade de Jesus não há lugar para esses “juízes”,
intolerantes e intransigentes, que estão sempre à procura da mais pequena falha
dos outros para condenar, mas que não estão preocupados com os erros e as
falhas – às vezes bem mais graves – que eles próprios cometem. Quem não está
numa permanente atitude de conversão e de transformação de si próprio não tem
qualquer autoridade para criticar os irmãos.
Finalmente, o Evangelista Lucas apresenta o
critério para discernir quem é o verdadeiro discípulo de Jesus: é aquele que dá
bons frutos (cf. Lc 6, 43-45). Neste contexto, parece dever ligar-se os “bons
frutos” com a verdadeira proposta de Jesus: dá bons frutos quem tem o coração
cheio da mensagem de Jesus e a anuncia fielmente; e essa mensagem não pode
gerar senão união, fraternidade, partilha, amor, reconciliação. Quando as
palavras de um “mestre” geram divisão, tensão, desorientação, confrontação na
comunidade, elas revelam um coração cheio de egoísmo, de orgulho, de amor-próprio,
de autossuficiência: cuidado com esses “mestres”, pois eles não são
verdadeiros.
Devemos anunciar o Evangelho de Jesus, esse é o resumo do
Evangelho de hoje. Quem não vive o Evangelho perverte a sua mensagem e aí
resulta, tantas vezes, opressão, medo, escravatura, em nome de Jesus. Isto tem
acontecido, com frequência, ao longo da história da Igreja. É preciso, pois, um
permanente confronto do nosso anúncio com o Evangelho e com o sentir da Igreja,
a fim de que anunciemos Jesus e não traiamos a verdade da sua proposta
libertadora.
Como homens batizados devemos ser homens humildes, humildes e
cheios da graça divina. A boca deve falar do que o coração está cheio. A
história da trave e do cisco convida-nos a refletir sobre a hipocrisia. É fácil
reparar nas falhas dos outros e enveredar pela crítica fácil que, tantas vezes,
afeta a reputação e fere a dignidade das pessoas; é difícil utilizar os mesmos
critérios de exigência quando estão em causa as nossas pequenas e grandes
falhas... Somos tão exigentes conosco como somos com os outros? Temos
consciência da nossa necessidade permanente de conversão?
Caros irmãos,
A segunda leitura conclui a catequese que temos refletido nos quatro
últimos domingos sobre a ressurreição. São Paulo consultado pelos Coríntios –
preocupados com a aparente impossibilidade de o corpo, sensual e material, ter
acesso à vida plena com Deus – acerca da ressurreição, o apóstolo das gentes
desenvolve a sua catequese sobre essa questão polêmica.
São Paulo, na sua primeira carta aos Coríntios (cf. 1Cor 15,54-58)
nos ensina que a vitória foi-nos dada por Jesus Cristo. Na medida em que “o
nosso ser corruptível vai revestindo a incorruptibilidade, o nosso ser mortal
vai revestindo para vencer a morte, desmascarando-a.
No final da catequese, São Paulo registra que o
decisivo é que a morte tenha perdido para sempre o seu poder. Tanto em relação
a Cristo, como em relação aos cristãos, não é o “como” da ressurreição que
interessa, mas o fato em si. E, para Paulo, o fato em si é incontestável, está
para além de toda a dúvida. É porque a ressurreição é incontestável que Paulo não pode deixar de
festejar num hino – ainda que em miniatura – a vitória de Cristo e dos cristãos
sobre a morte. Para isso, recorre a textos bíblicos de Isaías (cf. Is 25, 8) e
Oseias (cf. Os 13, 14), ainda que evocados com bastante liberdade: “a morte foi
absorvida na vitória. Ó morte, onde está a tua vitória? Ó morte, onde está o
teu aguilhão?” (1 Cor 15 ,54-55).
O pecado, a escravidão, o egoísmo, a violência, o
ódio, aliados da morte não terão, a partir de agora, qualquer poder sobre o
homem: a ressurreição de Cristo libertou todos os batizados do medo da morte,
pois demonstrou que não há morte para quem luta por um mundo de justiça, de
amor e de paz.
O cântico de triunfo leva como acompanhamento
obrigatório uma ação de graças a Deus pois é Ele, o Senhor da vida, “que nos dá
a vitória por Nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Cor 15, 57).
A última palavra de Paulo é para convidar os
Coríntios – e os batizados de todas as épocas – a permanecer “firmes e
inabaláveis, cada vez mais diligentes na obra do Senhor” (1 Cor 15, 58). É um
convite a não projetarmos a ressurreição apenas num mundo futuro, mas a
trabalharmos cada dia para que a ressurreição (como libertação do pecado, do
egoísmo, da exploração e da morte) se vá tornando uma realidade viva na
história da nossa existência. Isto implica, evidentemente, não cruzar os braços
numa passividade que aliena, mas empenharmo-nos verdadeiramente numa efetiva
transformação que traga vida nova ao homem e ao mundo.
A ressurreição de Cristo garante-nos que o nosso
Deus é o Senhor da vida. Assim, percorremos o nosso caminho neste mundo com
total serenidade e confiança: sabemos que Deus está ao nosso lado sempre,
vigiando – como uma mãe que cuida do seu bebê; e que, quando chegar a última
fronteira, o nosso último fechar de olhos, a nossa saída deste mundo ou entrada
no outro, também então podemos estar tranquilos, porque o nosso Deus/mãe
continua vigilante. Ele é o Deus da vida, que nos garante a plenitude da vida.
Acreditar na ressurreição é, assim, empenhar-se
na construção de um mundo mais humano e mais fraterno, procurando eliminar as
forças do egoísmo, do pecado e da morte que impedem, já nesta terra, a vida em
plenitude. Por isso o Concílio Ecumênico Vaticano II diz: “a Igreja ensina que
a importância das tarefas terrenas não é diminuída pela esperança escatológica,
mas que esta antes reforça com novos motivos a sua execução” (Gaudium et Spes,
21).
Prezados irmãos,
Todo batizado, de uma forma ou de outra, é chamado a dar
testemunho de sua fé em Jesus Cristo. Ser falso guia não é um risco apenas para
quem tem responsabilidades na Igreja. O Evangelho, portanto, faz um convite
para sermos verdadeiros em nosso testemunho. Jesus deixou claro que nem todos
aqueles que o chamam de “Senhor” entrarão no Reino dos céus (Mt 7,21). Ele se
opõe a qualquer atitude de seus discípulos que se fundamente apenas em
aparências. A coerência entre o falar e o agir segundo seus ensinamentos é
sinal de autenticidade. Aquele que, de fato, adere a Jesus Cristo está apto
para entrar no Reino dos céus.
As leituras deste domingo são um convite para termos cuidado em
como ensinamos ou conduzimos aqueles que o Senhor nos confia. Podemos ser
tentados a apresentar-lhes uma doutrina ou um ensinamento que reflitam muito
mais nossa visão e nossas teorias do que o Evangelho de Jesus Cristo; ou,
ainda, atribuir a Jesus nossas próprias exigências, desvirtuando seu verdadeiro
ensinamento.
O questionamento de Jesus deve nos levar a séria avaliação: quais
traves não estou enxergando em meus olhos? Por que o cisco no olho do outro me
incomoda mais que a trave que está no meu? É fácil enxergar as falhas dos
outros, tornarmo-nos exigentes, arrogantes, intolerantes com elas e, ao mesmo
tempo, sermos tão condescendentes com nós mesmos, convencidos que estamos da
verdade. Somos convidados a ter consciência da necessidade de estarmos em
contínuo processo de conversão.
Irmãos caríssimos,
Somos chamados a avaliar o efeito de nossas
palavras e refletir sobre elas, sobre aquilo que sai de nossa boca: é bom? Faz
bem? Ajuda o outro? O que falamos é justo e necessário? Ou estamos vivendo em
comunidades tóxicas, repletas de fofocas e palavras vazias, que não constroem a
sinodalidade? O apóstolo São Paulo nos convida a edificar nossa fé na
ressurreição, vivendo em Cristo como novas criaturas e superando as
dificuldades que vivemos no tempo presente em vista da vida salva que nos
aguarda. Por último, o Evangelho enriquece nosso modo de agir: somo comparados
a “árvores”, plantadas temporária e transitoriamente neste mundo, no qual somos
convidados a gerar vida, frutificar e alimentar as pessoas com as quais
convivemos, dentro e fora de nossas comunidades de fé.
Caros irmãos,
Rendamos graças a Deus que nos dá a vitória por Nosso Senhor Jesus
Cristo. Vale a pena, como diz São Paulo, ser firmes, inabaláveis, fazer
incessantes progressos na obra do Senhor, cientes de que a nossa fadiga não é
vã no Senhor.
Esta obra do Senhor há de permanecer porque é verdadeira, faz-nos
transparentes diante de Deus e diante do próximo; é construída na sinceridade.
Que o Senhor nos dê a graça de agirmos sempre de coração sincero, Amém!
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