“Sede o rochedo
que me abriga, a casa bem defendida que me salva. Sois minha fortaleza e minha
rocha; para honra do vosso nome, vós me conduzis e alimentais”. (cf. Sl 30, 3s).
Meus queridos Irmãos,
O
Tempo Comum é uma grande escola de aprendizagem. Na liturgia nós vamos
caminhando no cotidiano aprendendo da grande misericórdia de Deus a ternura de
nos tornarmos co-partícipes do mistério da salvação.
A
reflexão evangélica de hoje nos relembra o trecho do Sermão das
Bem-Aventuranças, ou o Sermão da Montanha (cf. Lc. 6,17.20-26). Neste Sermão,
Cristo, o Filho de Deus, decreta e dá rumos novos da humanidade. Assim, Lucas
que narra o seu evangelho acima das tradições judaicas, demonstrando a
universalidade da salvação em que as bem-aventuranças são ditas para os
apóstolos inicialmente. Os discípulos são para Jesus as futuras colunas da
Igreja, os mestres que deverão continuar a proclamar as Bem-Aventuranças. Tanto
que o ensinamento das Bem-Aventuranças é coisa que deve ser sempre de novo
repetida e sempre de novo proposta como prática de vida. Os Apóstolos, os doze
e todos aqueles que entraram sucessivamente em seu lugar, têm como uma de suas
maiores obrigações proclamar as Bem-Aventuranças, tais como as proclamou Jesus.
É
exatamente sobre o ter que Jesus lança a mão e o pulveriza com maldição. Isso
para escândalo de muitos, inclusive de gente piedosa. No Antigo Testamento o
ter significava benção divina. Quanto mais riqueza alguém possuísse tanto mais
abençoado ser julgava. Ser pobre significava ser desprezado por Deus. E
certamente Deus não desprezaria ninguém que não fosse pecador. A dedução era
rápida: pobre necessariamente era pecador, ainda que nenhuma mancha lhe pesasse
na consciência. Jesus encontrou uma multidão desses pobres, famintos, tristes e
odiados. E como ele viera para os últimos da sociedade, ele tomou a defesa dos
pobres e excluídos. Os pobres descritos pelo Evangelista Lucas são os
indigentes, os que não tem o que comer, os que não tem casa, os que não tem
ninguém que lhes socorra e estenda a mão. Mas as Bem-Aventuranças não olham
especificamente para uma solução social, político-econômica, mas para a
misericórdia de Deus, que ultrapassa as realidades terrenas.
Queridos Irmãos,
Lucas
(cf. Lc 6,17.20-26) contrapõe exatamente as Bem-Aventuranças e as maldições:
pobre-rico, faminto-farto, triste-sorridente, odiado-aplaudido, dando com isso
uma concretude estupenda às palavras de Jesus. E, mais: usa a segunda pessoa do
plural, enquanto Mateus usa a terceira, que é indefinida. Usando a segunda
pessoa, pode-se imaginar o dedo em riste, apontando para a multidão, apontando
para cada um dos seus ouvintes. E Jesus tinha autoridade para fazê-lo não só
por ser o Mestre e Senhor, mas também porque ele, antes de ensiná-las, viveu as
bem-aventuranças.
São Lucas
inicia este “discurso da planície” com quatro bem-aventuranças (que equivalem
às nove de Mateus). Os destinatários destas bem-aventuranças são os pobres, os
que têm fome, os que choram, os que são perseguidos. A palavra grega usada por
Lucas para “pobres” (ptôchos) traduz certos termos hebraicos (‘anawim, dallim,
ebionim) que, no Antigo Testamento, definem uma classe de pessoas privadas de
bens e à mercê da prepotência e da violência dos ricos e dos poderosos. São os
desprotegidos, os explorados, os pequenos e sem voz, as vítimas da injustiça,
que com frequência são privados dos seus direitos e da sua dignidade pela
arbitrariedade dos poderosos. Por isso, eles têm fome, choram, são perseguidos.
Ora, serão eles, precisamente, os primeiros destinatários da salvação de Deus. Por
quê? Porque a proposta libertadora de Deus é para uma classe social, em
exclusivo? Não. Mas porque eles estão numa situação intolerável de debilidade e
Deus, na sua bondade, quer derramar sobre eles a sua bondade, a sua misericórdia,
a sua salvação. Depois, a salvação de Deus dirige-se prioritariamente a estes
porque eles, na sua simplicidade, humildade, disponibilidade e despojamento,
estão mais abertos para acolher a proposta que Deus lhes faz em Jesus.
As bem-aventuranças manifestam, numa outra linguagem, o que Jesus já havia dito
no início da sua atividade na sinagoga de Nazaré: Ele é enviado pelo Pai ao
mundo, com a missão de libertar os oprimidos. Aos pequenos, aos privados de
direitos e de dignidade, aos simples e humildes, Jesus diz que Deus os ama de
uma forma especial e que quer oferecer-lhes a vida e a liberdade plenas. Por
isso eles são “bem-aventurados”.
As “maldições” (ou os quatro “ais”) aos ricos que preenchem a segunda parte do
Evangelho de hoje são o reverso da medalha. Denunciam a lógica dos opressores,
dos instalados, dos poderosos, dos que pisam os outros, dos que têm o coração
cheio de orgulho e de autossuficiência e não estão disponíveis para acolher a
novidade revolucionária do “Reino”. As advertências aos ricos não significam
que Deus não tenha para eles a mesma proposta de salvação que apresenta aos
pobres e débeis; mas significam que, se eles persistirem numa lógica de
egoísmo, de prepotência, de injustiça, de autossuficiência, não têm lugar nesse
“Reino” que Jesus veio propor.
A lógica do
mundo proclama “felizes” os que têm dinheiro, mesmo quando esse dinheiro
resulta da exploração dos mais pobres, os que têm poder, mesmo que esse poder
seja exercido com prepotência e arbitrariedade, os que têm influência, mesmo
quando essa influência é obtida à custa da corrupção e dos meios ilícitos. Mas
a lógica de Deus exalta os pobres, os desfavorecidos, os débeis: é a esses que
Deus Se dirige com uma proposta libertadora e a quem convida a fazer parte da
sua família. O anúncio libertador que Jesus traz é, portanto, uma Boa Nova que
enche de alegria os corações amargurados, os marginalizados, os oprimidos. Com
o “Reino” que Jesus propõe aos homens, anuncia-se um mundo novo, um mundo de
irmãos, de onde a prepotência, o egoísmo, a exploração e a miséria serão
definitivamente banidos e onde os pobres e marginalizados terão lugar como
filhos iguais e amados de Deus.
A felicidade
de que fala Jesus está inscrita nos rostos dos seus discípulos. É, de facto,
olhando-os que Ele os declara “felizes”. Duas bem-aventuranças estão no
presente. Os discípulos são já felizes, porque são pobres: deixaram tudo,
barco, família, para inaugurar com Jesus o seu Reino e pregar a sua carta. São
felizes porque são já cidadãos deste Reino. São já felizes porque são como o
seu Mestre, rejeitados, insultados. O seu discurso incomoda, porque convida a
uma mudança, a um regresso a Deus: amar é já sair de si mesmo.
Irmãos queridos,
A
primeira Leitura retirada de Jeremias (cf. Jeremias 17,5-8) é uma advertência
da Liturgia da Igreja para nós: maldito o homem que coloca a sua confiança nos
homens: são como os cactos secos no deserto. Por conseguinte, quem confia em
Deus é como a árvore frondosa à beira-rio. Com essas frases, critica a atitude do
rei Sedecias e de seus conselheiros, que colocavam toda a sua confiança nos
pactos políticos que Judá trata de estabelecer com os egípcios, julgando-os
bastantes fortes para desviar o perigo dos babilônios. Confiança inútil, como a
história tem mostrado. Que esta advertência sirva para cada um de nós. É melhor
e sempre bom, unicamente bom, nos colocarmos nas mãos de Deus e deixar os
homens, porque em Deus tudo podemos.
O tema fundamental é, portanto,
o da confiança/esperança. A primeira parte da antítese (vers. 5-6) denuncia o
homem que se apoia noutro homem e prescinde de Deus. Não se trata de dizer que
não devemos confiar nos que nos rodeiam e apoiar-nos neles; trata-se de
denunciar essa autossuficiência de uma humanidade que já não precisa de Deus,
nem vê n’Ele essa rocha segura que tudo sustenta. Prescindir de Deus e não
contar com Ele significa construir uma existência limitada, efémera, raquítica,
a que falta o essencial, como um arbusto plantado no deserto, condenado
precocemente à morte. A segunda parte da antítese (vers. 7-8) apresenta, em
imagem, a vida daquele que confia em Deus e n’Ele coloca a sua esperança: é
como um arbusto plantado à beira da água, que pode mergulhar as suas raízes bem
fundas e que encontra vida em plenitude. A imagem sublinha, sobretudo, a
segurança, a solidez, a paz, a fecundidade, a abundância de vida.
A oposição entre deserto e
várzea pode aludir à oposição entre deserto e Terra Prometida: se Israel
confiasse unicamente em Deus, lançaria as suas raízes de forma permanente na
Terra Prometida e não experimentaria a aventura do exílio.
Conhecemos a desilusão e a
frustração que resultam da confiança traída. É uma experiência bem dolorosa
confiar/esperar e receber traição/ingratidão. Em certos momentos extremos,
parece que tudo se desmorona à nossa volta e que perdemos a vontade de continuar
a construir a nossa vida. A primeira leitura de hoje põe-nos de sobreaviso:
tudo o que é humano é efémero, limitado, finito; só em Deus encontramos o
rochedo seguro que não falha e que não nos decepciona.
Prezados irmãos,
A
Segunda Leitura (cf. 1 Cor 15,12.16-20) reforça a mensagem do evangelho: “Se
temos esperança em Cristo somente para esta vida – porque colocamos tudo em
função desta vida, até o próprio Cristo -, somos os mais lamentáveis de todos
os homens” (cf. 1 Cor 15,19). A leitura fala que a ressurreição é a base da
nossa fé. É uma continuação de domingo passado. O escândalo da ressurreição já
existia na Grécia do tempo de Paulo. Alguns recusavam a idéia da ressurreição e
preferiam ver a vida eterna como uma mera participação mística. Mas Paulo
mostra como a ressurreição corporal do Cristo é a base de nossa fé; então a
ressurreição existe.
Para o
Apóstolo São Paulo, uma vez admitida a ressurreição de Cristo, a ressurreição
dos batizados impõe-se como algo perfeitamente evidente. A fé em Cristo
ressuscitado desemboca inexoravelmente na inquebrantável esperança de que
também os cristãos ressuscitarão. O inverso também é verdadeiro: não esperar a
ressurreição dos mortos equivale a não acreditar na ressurreição de Cristo. Não
é possível desvincular uma coisa da outra.
São Paulo
passa, então, a enumerar as consequências fatais que adviriam, para a vida
cristã, se Cristo não tivesse ressuscitado: a vivência da fé e a aceitação das
propostas de Jesus não teriam qualquer sentido e os cristãos seriam gente
enganada, “os mais miseráveis de todos os homens” (vers. 19). Mas Paulo tem a
certeza de que os cristãos não são um rebanho de gente iludida. A partir da
ressurreição de Cristo, podemos acreditar nessa vida plena que Deus reserva
para todos os que O amam. É essa perspectiva que dá sentido à caminhada que o
cristão faz neste mundo.
Chegados aqui, Paulo detém-se para lançar um grito jubiloso de fé e de
esperança: “Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram”
(vers. 20). Jesus ressuscitou não como o único, como um caso excecional, mas
como o primeiro de uma longa cadeia da qual fazemos parte. Este “primeiro” não
deve ser entendido em sentido cronológico, mas no sentido de que Cristo é o
princípio ativo da nossa ressurreição, o princípio que gera essa nova humanidade
sobre a qual as forças da morte não têm qualquer poder. Ele arrasta atrás de Si
a humanidade solidária com Ele, até à realização plena, à vida definitiva, à
salvação total.
A certeza da
ressurreição garante-nos que Deus tem um projeto de salvação e de vida para
cada homem; e que esse projeto está a realizar-se continuamente em nós, até à
sua concretização plena, quando nos encontrarmos definitivamente com Deus.
A nossa vida
presente não é, pois, um drama absurdo, sem sentido e sem finalidade; é uma
caminhada tranquila, confiante – ainda quando feita no sofrimento e na dor – em
direção a esse desabrochar pleno, a essa vida total em que se revelará o Homem
Novo.
Prezados irmãos,
A lista de
bem-aventuranças apresentadas no texto do Evangelho abala nossa sensibilidade.
Aqueles que são pobres, famintos, que choram ou são perseguidos são chamados de
bem-aventurados. A mensagem proclamada por Jesus é totalmente contrária ao que
o mundo pensa. As bem-aventuranças mencionam situações que frequentemente são
vistas como sinais do abandono de Deus. Por sua vez, os “ai de vós”,
relatados apenas no texto de São Lucas, apontam para situações que muitas vezes
são consideradas sinais de bênção, como ter riquezas, abundância, boa reputação
e alegria. Tudo isso são coisas que não nos dão garantias da felicidade eterna.
Além disso, direcionam nossa confiança a coisas erradas e podem nos conduzir a
um estilo de vida que nos afasta da felicidade eterna. O conjunto das
bem-aventuranças nos faz refletir: Como percebemos a bênção de Deus em nossa
vida? Quais sinais indicam que sou uma pessoa bem-aventurada?
Em uma de suas
catequeses sobre as bem-aventuranças, o Papa Francisco exortou a multidão
reunida na praça de São Pedro, dizendo que o motivo da bem-aventurança não é a
situação atual, mas a nova condição que os bem-aventurados recebem como dom de
Deus: “porque deles é o Reino do céu”, “porque serão consolados”, “porque
possuirão a terra”, e assim por diante. Deus, para se doar a nós, escolhe
muitas vezes caminhos impensáveis, talvez os dos nossos limites, das nossas
lágrimas, das nossas derrotas. Podemos estar certos, porém, de que as
bem-aventuranças nos conduzem sempre à alegria; são o caminho para alcançar a
alegria.
Irmãos e irmãs,
Da mesma forma
que Jeremias exorta o povo a confiar no Senhor, em vez de apenas nas
capacidades humanas, somos chamados a examinar onde temos depositado nossa
confiança e segurança na vida. Em um mundo marcado por diversos tipos de
intolerância, seguir o projeto do Deus da vida nos impulsiona a estar do lado
comprometido com a vida e a justiça.
A ressurreição
de Cristo é o fundamento da nossa fé. Como essa verdade impacta nossa vida
diária e nossa visão de futuro? A ressurreição re-presenta vida nova, é a
prática do amor em prol do bem comum. Ressurreição é atitude e compromisso
diário com o Deus da vida.
As
bem-aventuranças de Jesus questionam nossas ideias sobre felicidade e sucesso.
Como podemos aplicar esses ensinamentos em nosso contexto atual? O Evangelho
ressoa de maneiras diferentes para diferentes pessoas. Para os pobres, é uma
mensagem de esperança que os convida a encontrar consolo; para os ricos, é um
chamado à transformação e à mudança de coração. Como podemos entender e
vivenciar essa mensagem em nossas comunidades cristãs?
A mensagem das
leituras deste domingo ecoa ao longo dos séculos, desafiando-nos a examinar
onde depositamos nossa confiança e segurança na vida. Ela quer suscitar em nós
uma fé que transcenda as circunstâncias temporais, enraizando-se na esperança
eterna e na pessoal e social. Que possamos responder ao chamado de Jesus com
generosidade e coragem, comprometendo-nos com a construção de um mundo mais
justo, solidário e compassivo, onde todos possam experimentar a plenitude da
vida que Cristo nos prometeu.
Caros irmãos,
Jesus não é
contra os ricos. Tem pena deles. Por isso, os censura e os exorta a uma mudança
de mentalidade, que não deixará de ter seus reflexos na estrutura da sociedade.
Não é bem verdade que há lugar para os ricos na Igreja. Há lugar para eles, na
medida em que se esvaziam de si mesmos e de seus bens, transformando-os em bens
para todos. Há várias maneiras de fazer isso. A gerência da inteligência de uma
empresa pode ser um meio melhor do que certas reformas agrárias do passado.
A esperança do
reino supera a vida material. É a esperança que se baseia em Cristo
ressuscitado conforme nos ensina a segunda leitura: “Se temos esperança
em Cristo tão-somente para esta vida, somos os mais lamentáveis de todos!” Aquele
que se tornou pobre para nós é que nos enriquece com sua dádiva do amor
infinito do Pai, que ele revela no dom da própria vida. O reino de Deus anuncia
aos pobres, decerto, começa com a justiça e a fraternidade, mas tem um
horizonte que nosso olhar terreno nunca alcança!
Rezemos, pois
com fé, para seguirmos o Cristo, o Caminho da Vida, que importa atender ao seu
apelo e convite: “Vinde a mim e alimentarmo-nos com seu Corpo santo e seu
Sangue Sagrado”. E, mais, a própria oração da coleta é a nossa súplica
aos Céus nesta missa: “que Deus nos conceda um coração reto e puro, tão
vazio de si mesmo, que Deus possa habitar em nós! Ora, Deus se deixa geralmente
representar por gente de condição humilde e orante” ...
Rezemos! Amém!
Padre
Wagner Augusto Portugal.
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